segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Crash


Os acontecimentos recentes no país trouxeram-me a memória de um filme que relata uma história verídica acerca dos ocupantes de um avião que se despenhou sobre uma montanha gelada de difícil acesso. Na realidade, nunca o vi, mas, com algumas adaptações, o filme português seria mais ou menos isto...
Depois de se alimentarem dos restos disponíveis, e de comidos todos os defuntos, foi tomada a decisão de cortar membros dos sobreviventes para dividir por todos, de forma a manterem-se todos vivos.
Nestas coisas, escolhe-se sempre um líder, aquele em que a maioria confia, e é esse que indica quem é estropiado. Assim, foi escolhido o Co-piloto, por se julgar que teria o necessário sangue frio, e por ter denunciado o Piloto, que teria provocado a queda do avião com o gasto irreflectido de combustível numa rota feita à sua vontade, para ver as vistas e fazer umas piruetas exibicionistas. O Co-piloto manteve, à sua volta, parte da tripulação, de sua confiança, ficando, o Piloto e os restantes membros, um pouco afastados, refundidos, alimentados e protegidos.
Entendendo que todos acabariam mal de outra forma, os escolhidos para serem estropiados foram servindo de alimento a todos, incluindo aos próprios, julgando que todos passariam pelo mesmo, à vez. Era um mal necessário, diziam.
De vez em quando surgiam problemas. A desconfiança de que aqueles que ainda estavam inteiros comiam mais do que os outros, provocava discussões violentas, mas os que já não tinham um braço ou uma perna estavam em desvantagem, e a coisa lá parecia acalmar, com alguns resmungos soprados entre dentes, perante as promessas de que ninguém seria tratado de forma diferente, e que todos dariam a sua parte.
Havia quem assumisse, de entre os inteiros, que deviam comer mais, para poderem ajudar os restantes assim que fosse possível encontrar uma saída, o que também acabava em discussão - apesar de um ou outro estropiado também achar que sim, vá-se lá saber porquê.
Apesar desta tensão permanente, uma certa paz mantinha-se, mesmo com a morte e o sofrimento de um ou outro estropiado que acabava por ver o seu coto infectar pela falta de assistência. Era um mal menor, diziam.
Um dia, ao verem passar um avião no céu, e na esperança de que os tivessem visto e viessem socorrer, o Co-piloto decide que os inteiros devem assim permanecer, porque só eles poderão ajudar os estropiados a chegar à salvação. Assim, ordena que os estropiados poderão ceder outro órgão, para que todos se salvem.
É aqui que rebenta a revolta. Todos os estropiados se indignam e gritam contra os inteiros, recusando dar mais seja lá o que for. Reúnem-se e decidem que o Co-piloto deve ser afastado, deixando de tomar decisões. Como se não bastassem as razões dos que foram enganados, no meio do grupo ruidoso, quem mais incita à revolta é um inteiro, tripulante afastado, que até já convenceu alguns dos estropiados que o homem indicado para ser líder é o Piloto.

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